Tempos Modernos

Um homem, ao tomar seu desjejum, observava na janela o movimento de transeuntes e automóveis na rua. Constatou que quase nada fugia à normalidade, a não ser por um novo elemento que fora adicionado à paisagem: um outdoor. Olhou com mais atenção e quase não pôde acreditar no que viu: a figura estampada era a sua cara!!!

O homem ficou assustado. Como aquilo fora parar bem ali, em frente à sua casa, e ainda ostentando o seu rosto, que, aliás, nem era dos mais belos...

Olhou de novo para ter certeza de que não sonhava, pois, afinal, era ainda muito cedo e os olhos poderiam ter-lhe pregado uma peça das boas...

Novamente, espantado, teve a esperança frustrada. De fato, aquilo que via era a expressão da realidade. Só fugia ao seu conhecimento que tipo de realidade era aquela...

Lembrou-se das máximas dos estudiosos de comunicação de massa e daqueles princípios genéricos demais, que dizem que o ser humano, quando exposto aos conteúdos midiáticos, tem o poder de selecionar os conteúdos que absorve... Também se recordou dos frankfurtianos com mania de perseguição que aludiam à massificação sem precedentes da cultura... Ai, Deus, a indústria serializadora engoliu minha alma e discernimento. A qual explicação devo recorrer para solucionar meu problema?- pensava.

Depois, começou a quase surtar... Que mundo maluco! Como poderiam utilizar sua imagem sem prévia autorização e ainda por cima em um cartaz daquele tamanho!

Os amigos, ah, os amigos. Seria, a partir dali, motivo de chacota permanente. O Freire, com aquele jeito patético, as unhas e o bigode amarelados pelo consumo prolongado do cigarro, aquela frustração de ser amigo de assessor, político e artista influentes e nunca ser cumprimentado por eles e a costumeira cara de pau de dizer que participou de movimentos contraculturais, sem a História lhe atribuir o valor devido. Já o ouvia dizendo: “E aí, ficou famoso e não falou aos amigos. Pô, agora vai até dar autógrafo e pegar a mulherada. É isso aí, garoto! Lembra daquela vez, quando fui chamado para gravar...” Ouvir isso seria tortuoso demais...

O Marques viria com aquele papo intelectulóide de que, “segundo especialistas em comportamento, a utilização da imagem de um ser humano aleatório advém do fenômeno (que somente ele conhece) da fragmentação da informação a serviço de uma conspiração incidente em todo o mundo, que rouba a individualidade do homem para torná-lo mais subserviente ao capital, blá, blá, blá... Puro besteirol. Ele critica o Freire, mas é tão frustrado quanto ele. Seu sonho era ser um professor renomado em alguma Uni – alguma – coisa, mas tornara-se apenas um bancário enfadonho e intelectual de araque.

E o Aparecido, aquele beberrão e conquistador barato. Tem uma barriga enorme e acredita que as mulheres vivem aos seus pés. Já fora um belo homem, mas, hoje, sua lábia e ternos que não lhe assentam na silhueta, estão fora de moda. Este diria que aparecer em uma avenida ultramovimentada era uma dádiva. Com o intuito de obter espaço para divulgar seu “talento”, faria qualquer coisa, até animar festa de criança, para, quem sabe, dar um beliscãozinho no traseiro de uma palhacinha apetitosa...

Defrontou-se novamente com seu sorriso amarelo estampado na rua... Até contrastava com aquele cenário cinza. Eram vários tons: cinza chumbo do asfalto, cinza claro no céu (a fumaça cobrindo tudo) e o cinza indefinível no semblante das pessoas. Observou o produto que era anunciado no outdoor. “Problemas com dinheiro? Não se preocupe. Ligue pra gente que tudo sairá do vermelho. Pôxa, pensava, e eu cheio de contas a serem quitadas. Situação paradoxal. Tenho dívidas e anuncio empresas de crédito pessoal. Absurdo!

Iriam começar a lhe pedir dinheiro na rua. Diriam: “Moço, vi que o senhor empresta dinheiro. Careço tanto de sua ajuda. Estou passando por muitas dificuldades.” Sairia correndo e diria que não sabe a origem daquela aberração e que não levou um tostão por aquilo.

No trabalho, pensariam que fechou um contrato milionário com algum agente de estrelas e tentariam lhe apresentar a “menininha, filha da vizinha, que imita aquela loira tão bem. É um talento não descoberto, se puder dar uma forcinha”. O chefe acharia que aquela seria sua última semana. Seria despedido. As contas se aglomerariam sobre a mesa da sala do pequeno apartamento, que ainda nem acabara de pagar. Estava arruinado!

Maldito seja quem colocou a foto lá. A infelicidade seria a constante de sua vida, previa. Que inferno tudo se tornara. Sua mãe ligaria e lhe jogaria na cara que quando precisou de uma máquina de lavar nova ele se recusou a comprá-la por pura crueldade.

Sua realidade mudara de forma avassaladora. Tudo que ontem era sólido, se esvaiu sem nenhuma justificativa. Teria de descobrir como aquilo acontecera e iniciar uma nova existência. Poderia, quem sabe, mudar de nome, ir para outro continente, estabelecer um novo círculo de amizades, fazer uma plástica. No momento todas as hipóteses levantadas eram apenas conjeturas. As certezas viriam apenas depois que transpusesse a porta. Estava amedrontado. Quem seria ele a partir daquele dia?

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