Closer - Texto de um leitor da Bravo!


Mike Nichols é, antes de tudo, um homem de teatro. Formado na escola de Lee Strasberg, embora não diretamente ligado ao Método, fez com Elaine May uma famosa dupla com a qual chegou à Broadway. Em 1963, estreou como encenador com enorme sucesso de público e de crítica, com "Descalços no Parque", de Neil Simon. As marcas do seu estilo: um enorme sentido do tempo, perfeita direção de atores e uma maníaca atenção ao pormenor, atraíram Hollywood e o seu debute no cinema deu-se justamente com a adaptação de uma peça de teatro, dirigindo de forma brilhante um quarteto de atores, de diferentes escolas (Elizabeth Taylor, Richard Burton, George Segal e Sandy Dennis) numa ágil versão de "Quem Tem Medo de Virginia Woolf", de Edward Albee, em 1966. Deste filme, como do seguinte, "A Primeira Noite de um Homem", de 1967, ficam o gosto pelo grande-plano, a importância da evidência teatral, transformada por uma câmera "nervosa" e por uma montagem truculenta. Em ambos, transgrediu códigos morais, afrontou tabus e filmou a violência do texto e da confrontação entre corpos e rostos. Este gosto pelo desafio à norma prolongou-se por "Ardil 22"(1970) ou, mais tarde, pela paródia de "A Gaiola das Loucas"(1996), enquanto a centralidade do trabalho dos atores o levou a criar veículos dramáticos para Meryl Streep: "Silkwood"(1983), "A Difícil Arte de Amar"(1986) e "Lembranças de Hollywood"(1990). A variedade no tratamento de gêneros levou-o do drama à comédia sentimental ("Uma Secretária de Futuro", de 1988) ou à reformulação moderna do filme de terror psicológico: "Lobo"(1994). Esta introdução tem por objetivo integrar desde já o seu último filme, "Perto Demais", numa lógica autoral, discernível por detrás de uma obra vasta: o material é tratado com óbvia teatralidade, exigindo dos atores registros excessivos, insiste-se na força dos rostos com uso do "close-up" em momentos centrais; faz-se da montagem o instrumento de uma forte intervenção sobre as mudanças de cena e de tom. A história começa com a formação de um casal: o jornalista Dan (Jude Law) e a dançarina Alice (Natalie Portman) - ao qual se acrescentará uma segunda mulher - Anne (Julia Roberts) - e um segundo homem - Larry (Clive Owen) - cujas relações cruzadas vão constituir o cerne da narrativa: a personagem de Roberts conhece a de Law num estúdio fotográfico e, mais tarde, a de Clive Owen por meio de uma brincadeira de Dan que se faz passar por Anne num chat. Primeiro de tudo, "Perto Demais" está extraordinariamente bem escrito e planificado, baseando-se numa estrutura circular que parece criar toda a narrativa em "flash-back" que por sua vez incorpora outros "flash-backs". Tudo começa e acaba com a câmera lenta que desconstrói o movimento do andar e do olhar da personagem de Law, no seu encontro inicial com Alice (movimento ao qual se retorna no final, através de uma personagem não identificada), num jogo do amor e do acaso, encenado no domínio do aleatório. Depois, o filme articula-se de forma subliminar com outros textos que o suportam: a fotografia como cristalização dos rostos e sentimentos; Anne é fotógrafa, entra no jogo porque tira uma foto de Dan, expondo e expondo-se na aproximação cada vez maior ("closer", que é o título original do filme - algo desvirtuado na tradução brasileira). Mais importante, porém, se torna a presença subliminar de "Cosí Fan Tutte", de Mozart, que pontua o filme, em especial duas das seqüências fundamentais: quando Anne fotografa Dan, ouve-se uma gravação do trio "Soave Sai Il Vento" - no trecho da ópera, Dorabella e Fiordiligi, na companhia do cínico Don Alfonso, dizem adeus aos respectivos namorados que, supostamente, vão para a guerra, regressando disfarçados de turcos e trocando entre si as amadas. Em "Perto Demais" estamos, também, perante um trio que se esboça apenas, com a chegada inopinada de Alice e a primeira hipótese de cena de amores partilhados. Mais tarde, já um casal, Anne e Dan encontram-se em Covent Garden para ouvir a mesma ópera, mas ela chega atrasada e os jogos de sedução decorrem no bar e no foyer. Entretanto forma-se um outro casal (entre a deslumbrante Roberts e um extraordinário Clive Owen, perverso e manipulador) depois do já citado encontrado num "chat" em que Dan se fez passar por Anne. A atração homossexual parece ficar por aqui, pela sugestão, mas o quarteto evolui para um "jogo", em que os dois casais se trocam e se recompõem, como se Mozart pudesse cruzar-se com "Quem Tem Medo de Virginia Woolf", com uma violência verbal e, até, física, que se não compadece com as sutilezas do cinismo mozartiano: da fórmula "assim fazem todas", a dar conta de uma misoginia militante, passamos a um "assim fazem todos", marca de uma misantropia contemporânea, em que o amor funcionasse como perda e como permanente ferida aberta. Nichols contrapõe ao tratamento elegante da ópera de Mozart, um jogo de traições e de mentiras que tem dois pontos culminantes: a seqüência no clube, em que Alice faz um "strip-tease" para Larry, e o afrontamento entre os dois homens, numa espécie de relação sadomasoquista por via interposta das mulheres que amam ou amaram. A câmera acaba por concentrar-se, de forma implacável, nos rostos e nos corpos dilacerados pelo desejo e pela incompreensão das regras do jogo. A linguagem é crua, a impossibilidade do amor e da fidelidade é exposta. Os dois homens tentam destruir-se e as duas mulheres submetem-se, de modos diferentes: Anne volta para o marido que abandonara por Dan, enquanto este se reconcilia com Alice que parece aceitá-lo de volta, para a perder sem qualquer razão, que não a desilusão amorosa universal. Toda a estilização sofisticada, que os modelos mozartianos haviam deixado na ficção, se esboroa numa angústia intensa que domina as personagens. Na retina ficam grandes imagens, com os atores, como em "Quem Tem Medo de Virginia Woolf", a dominarem a ação. Julia Roberts confirma o seu status de (quase) única estrela contemporânea: o seu rosto queima a tela e a sua fotogenia magoada apossa-se da personagem que é e não ela. O seu olhar na cena da separação contém lágrimas falsas, que confirmam toda a tristeza do mundo. O seu sorriso torna-se enigmático e mítico, sem chegar a iluminar a negrura. Jude Law possui a fragilidade que o papel exige, sempre à beira de esmorecer. Credível como personagem, parece, no entanto, estar sempre representando, como se sua noção do que é atuar o impossibilitasse de soar natural. Pela sua pusilanimidade passa a não-comunicação do conto moral. A química com Roberts opera-se na primeira cena e vai-se desfazendo na trágica impossibilidade da economia dos sentimentos. À Natalie Portman (Globo de Ouro para atriz coadjuvante) cabe a personagem menos complexa, stripper sem horizontes, americana exilada em Londres, sempre peixe fora d'água: quando se reveste da peruca loira, para assumir, pela primeira vez, o seu nome verdadeiro ganha finalmente carisma sexual, que até aí lhe fora negado, mas é uma personagem travesti de si própria, sem chama nem alma. Das quatro figuras do quarteto, é a "outsider", a que não pode aspirar a um estatuto de maléficos contornos. Não sabe jogar o jogo; limita-se a ser manipulada. Já Clive Owen (Globo de Ouro para ator coadjuvante) ultrapassa os limites da personagem: primeiro vítima de embuste sexual, acaba por ganhar carnalidade absoluta, dominando as peças do jogo, que parecem escapar-lhe. É ele o "manipulador-mor", o "macho" traído e o vingador, triunfando sob a mais feminina de todas as figuras, a de Jude Law. Mas os atores apenas existem em função de uma "mise-em-scène" extremada, em que cada um cumpre as marcações que lhe cabem. E, neste contexto, a maestria de Nichols consiste em saber jogá-los uns contra os outros, em estratégia calculada de trucidar as personagens, num niilismo sem remissão. O vazio domina, assim, toda e qualquer hipótese de relação amorosa. Como solução, permanece a câmera lenta, suspensão dos corpos, dos olhares e das pulsões sexuais. A comédia de pares dá, então, lugar a um negro vácuo, em que as relações são impossíveis e a sedução se reduz ao nada, a uma esquemática apresentação de corpos exangues. O teatro acabou.

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