A noite purificadora

A noite chega. Os prédios cinzentos, repletos de rachaduras, transformam-se em contornos sutis. São coadjuvantes. As luzes são as estrelas de primeira grandeza do espetáculo. Meu rosto é apenas mais um, perdido entre todos os seres obscuros que se deslocam sorrateiramente entre as ruas, becos, pontes...

São almas que fogem da claridade. Não são más. Apenas escamoteiam feridas. As da carne e as sentimentais. A escuridão disfarça a feiúra e evidencia apenas os traços fundamentais...os mais simples...elementares...Somente o que importa. Revela o necessário.

Um gato passa correndo diante de mim. Ele não é negro, como mandaria o clichê. É branco, com apenas uma mancha marrom em torno de um dos olhos. Criatura independente, caça o seu alimento e busca refúgio dos olhos curiosos. Os instintos lhe guiam na jornada.

Meu corpo está envolvido por um vestido negro, como a dama misteriosa que me inspira a escrever esse conto – a noite. As palavras são permeadas por um didatismo irritante para o leitor, mas gosto das minúcias em dados momentos. Minha veste contrasta com a palidez fantasmagórica do meu rosto. Vago como um espectro. Quase flutuo.

Quem observa meu caminhar não é tomado por arrepios, confundindo-me com um espírito perdido. Sou como um anjo da noite, leve, plácido, indo ao encontro do desconhecido.

Em vez de me guiar pelas estrelas e bússolas– por que não um GPS – deixo-me conduzir pela intuição. A porção felina existente em minhas células torna-me um caçadora nata e, paradoxalmente, me estimula a pensar nas ausências como bênçãos.

Poucas cores, escassez de companhias. Um quadro belo, limpo – despido de palpites. Ao contrário de meus passos leves, minha cabeça divaga pelo passado. A conexão é rápida. A volta ao presente é instantânea. E o trafegar alivia a tensão cerebral.

Um punhal aderido ao meu corpo pulsa. Nunca precisei usá-lo. Mas o conservo junto de mim e não titubearei se algum estranho ousar perturbar-me. Devo ter sangue cigano, porque me sinto hipnotizada ao olhar as pedras coloridas incrustadas na peça. Não sei se tem algum valor. Arrematei-a numa feira de antiguidades e desde então ele é meu companheiro inseparável. Meu melhor amigo nessa empreitada solitária.

Durante o dia, visto-me com afinco. Saias e blazers bem cortados. Coque baixo, cabelos alinhados. Base, corretivo, pó compacto...sombra, rímel, batom e gloss. Óculos. Sorriso perfeito. Comportamento afável. Quase uma diplomata. Lido com o poder e egos. Faço isso bem. Mas preciso me purificar. Para isso, caminho. Só. Converso com os acontecimentos do dia. Reflito junto com eles. Eles respondem aos meus estímulos. Julgo-os. Condeno-os. Mando-os ao cárcere. Eles cumprem a sentença e são libertados. Há paz! E assim sigo.

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