O espelho

Espelhos aparecem quebrados e estabelecem jogos de horrores nos filmes de sustos, sangue e suspense. Refletem o que somos hoje, mas são incapazes de reter um momento ou o estado de espírito do ente que se olha buscando respostas. Os gentios que ocupavam a terra brasilis antes dos lusos acreditavam que, assim que a imagem fosse refletida, a alma ficava aprisionada para sempre naquele sólido rio carcereiro de ilusões.

A obra que deixamos registrada tem o poder de fotografar o que pensávamos em determinado tempo. As imagens perdem espaço para apontamentos, sonhos e objetivos que ficaram presos em algum armário antigo, acumulando poeira, sem acesso à luz ou ao frescor das brisas. Nesse mundo que gira mais rápido do que em qualquer outra época, seis, sete anos são suficientes para revolucionar tudo. A mão do destino está sempre trabalhando para acelerar o fluxo e nos levar adiante, sem rumo definido.

É difícil identificar quando o que era deixou de ser; quando o que se sentia se deixou de sentir; quando a ferida purulenta se fechou. Talvez os nascimentos e mortes de pessoas e fatos sejam os únicos indicadores da passagem dos dias. Nossos ancestrais viviam somente uma existência. Nós não precisamos de várias encarnações para renascer e tecer novas vidas. Tudo acontece aqui e agora.

Olho para trás e vejo que construí e destruí castelos, "rompi com o mundo, queimei meus navios" e muitas vezes tive dificuldade para colocar as ideias em ordem, tranquilizar o coração e seguir em frente. Lendo este blog (no ar desde 2005, graças a uma dor profunda de amor), consigo entender um pouco de quem era e daquilo em que me transformei, mas, ainda assim, por repetidas vezes penso se algo poderia ter sido diferente.

Minha geração nasceu sob o signo do analógico e teve que se integrar ao mundo digital. Isso não aconteceu somente nos hábitos e ferramentas de trabalho. Acredito que esse movimento também trouxe impactos aos planos sentimental e comportamental, impondo novas formas de ação — assertivas, frias e ágeis — e trazendo alterações profundas nos relacionamentos.

Somos personagens do Ensaio sobre a Cegueira. Seguimos vendados, tateando formas familiares, tendo acesso a tudo de melhor e mais moderno disponível no mercado, mas insensíveis ao caos que reina em nosso entorno.

Olhamo-nos no espelho e não reconhecemos quem somos. Na vida real, ele não quebra, não se transforma no "Outro" que representa nossa faceta "do mal", mas reflete uma imagem superficial, de alguém preocupado somente em se afirmar, se ajustar ao meio e prosperar sem se ater ao desenvolvimento do seu saber ou à descoberta de si mesmo.

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