Lembranças

Levantei-me cedo. Encaminhei-me ao espelho e percebi que os vincos em meu rosto aumentaram exponencialmente. Cheia de estufefação, fiz minhas abluções, sentei à mesa e tomei meu desjejum. Duas lágrimas teimosas insistiam em descer sobre minhas maçãs do rosto já afetadas pela ação do tempo.
Vestida de forma simples, tomei o coletivo para ir ao velório de um querido companheiro de outras épocas. O dia estava abafado, as pessoas trafegavam com pressa pelas ruas, para se encerrar nos escritórios e produzirem as riquezas que encheriam os bolsos de outrem.
O céu estava encoberto por nuvens, o que tornava o dia cinzento, meio irreal, fantasmagórico. Os acontecimentos pareciam se desdobrar com uma velocidade atípica, contrária às leis da Física.
Sentia olhares piedosos recaindo sobre mim. Eu envelhecera subitamente. Fui deitar com uma aparência e acordei transfigurada. Não sei o que houve, mas agora só me importa chegar à despedida do homem que me fez tão feliz e por quem eu já derramei muitas lágrimas. Hoje não choro. Pelo menos não em profusão. O pouco líquido que verte é fruto de um fio de sentimento que resta nesse peito tão cansado.
Não sou amarga. Pelo contrário. Tive uma boa vida. Amigos, belíssimos bailes, algumas viagens, traços leves de erudição...Aos poucos, meus amigos foram se mudando para outros planos e eu senti, com muita sofreguidão, a falta de todos. Mas superei. Suspirei. E continuei. Agora, essa notícia de que meu antigo amor se foi. Deixou viúva, filhos e um netinho que nascerá no próximo mês. Judith. Essa mulher entrou em nossas vidas e fez com que eu abortasse completamente a possibilidade de constituir família. Ele foi o único que amei. E sei que me amou também. Soube também que ela, muito polida, não fora capaz de escamotear sua triste vida conjugal. Chorou muito por este homem.
Imagino-a beijando candidamente a testa dele e falando a todos o quão feliz fora a seu lado. Tudo como manda o protocolo. Eu não me atenho tanto às convenções. Despeço-me e enterro a parte material de minha juventude, mas as lembranças para sempre povoarão minha vida. A eternidade é uma grande caçadora. Impiedosamente, cerca a presa, a doma e não deixa que certas reminiscências sejam eliminadas!

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