Cabeças nas nuvens - *Luiz Caversan

Ela me deu um beijo na boca e quase disse que a vida é oca como a touca de um bebê sem cabeça.Essa é a música do Caetano, sim, é. Porque ela me deu um beijo na boca e disse que gostava do jeito que eu falava certas coisas. Charutinho, por exemplo. Gostei tanto que fui referencialmente, como tantas outras vezes, a Caetano.Na falta de coisa melhor pra dizer, e ainda à espera do beijo que eu sabia que viria, mas não tão rápido, olhei bem para os cabelos meio ruivos e para a boca rasgada e um pouco, só um pouco, mas suficientemente carnuda, para dizer: sim, é assim que eu gosto desde sempre.Ela me deu um beijo na boca e tirou todos os cuidados e preconceitos e salamaleques da minha mente, deixou que eu ficasse quase tão bem quanto imaginava que um dia ainda pudesse voltar a estar.Ela me deu um beijo na boca e pediu desculpas pelo atrevimento. Ora, ora que atrevimento bom de lembrar para sempre; mas deu vontade de mais. E mais e mais e mais.Mas sem falsas nem verdadeiras expectativas, pensei, afinal, porque ela quer tudo, uma grande, nova e arrebatadora paixão, e eu só sei que nada sei.Mas eu tive mais. E como tive, ah, como tive...Só não mais do que aquilo que dei, e isso de fato criou a grande parceria, a cumplicidade.Tanto tempo depois, essas emoções ficaram vívidas e presentes como se ontem fosse. Agora, acho que sei muito bem o que sei, e isso, bem ao contrário, não equaciona a questão.Não.Tampouco a paixão arrebatadora que certamente surgiu resolve o que quer que seja.Apenas constato que essa troca cúmplice e parceira, lado a lado, resultou no que sempre devem redundar os bons e grandes amores: subiram, desceram, sacolejaram, arrancaram outros tantos beijos e arroubos, e deixaram, de fato, cabeças ocas.Como que a pairar suavemente numa nuvem branca. E é essa, apenas essa, é a recordação que vale a pena ter.
*Luiz Caversan é jornalista e escreve para a Folha Online aos sábados.
16/10/2004

Postagens mais visitadas